segunda-feira, junho 4

beLIEf

Chego e sento-me ao teu lado, após um breve beijo na testa teu.. fugidio. Acho piada, mas não te digo nada e pergunto como estás.
Estou bem.. e tu? Está tudo bem contigo?
Esboço um sorriso e disfarço o turbilhão de sentimentos que me percorrem as veias.
Está tudo bem... - digo - o costume, tu sabes.
Olho para as tuas mãos e vejo como estão irrequietas. Sem demora, focas o vazio longe dos meus limites e dizes num tom de interrogação: Conta-me coisas.. que tens feito?
Tento focar o mesmo vazio que te fascinou e confesso Hoje matei uma pessoa. Tu olhas-me, assim num milésimo de segundo, antes mesmo de te devolver um olhar, antes mesmo de te prender e tornar-te cúmplice da minha história. Achas engraçado e perguntas-me como foi.
Estou certa de que não te interessa ouvir - afirmo.
Não não... - respondes - Conta-me como foi isso - e voltas a focar o teu olhar no vazio.
Desconfio um pouco, da tua atenção, e acompanho a tua dispersão do mesmo modo que invado o meu inconsciente e dispo os meus pecados.
Estava noite... - começo. Já tinha feito o jantar: as massas e a carne picada, como de costume, e resolvi sair de casa. Prendi o cabelo com uns elásticos, vesti um casaco comprido, o capuz pela cabeça e deixei as emoções em casa. Levei apenas comigo a chave, um mini-pacote de bolachas e um canivete.
Olhas para a janela e finjo perceber que continuas atento. Esfregas as mãos e pegas num cigarro, acende-lo. Continuo a minha aventura...
Voltei atrás e peguei nuns sacos, os quais enfiei num bolso lateral. Estás a ouvir-me? - pergunto. Olhas-me e respondes rapidamente - Sim sim. Continua.
Baixo a cabeça sem dares por isso.. Fui dar umas voltas, arejar a cabeça. Saí à rua e caminhei, uma ida sem rumo, mas tendo a certeza de que voltaria à minha cela.. perdão, casa. Comecei a ouvir uns barulhos em meu redor, qualquer coisa que me perseguia. Aquela preocupação que pensava não mais ter revelava-se agora num tremer das pernas, num ritmo acelerado de todos os músculos. Pensava em ti, em nós, em tudo o que me encaixa e, por fim, em mim. Pensava depois que não devia ser nada, nada mais.
Levanto a cabeça e estás mais longe que eu, envolvido nos teus pensamentos, e eu continuo..
Os barulhos tornaram-se mais frequentes, mas mesmo assim não desviei o meu olhar daquilo que era a minha frente. Pensei o quanto me enervava não ter a certeza de estar a ser ou não seguida. Ganhei coragem ou perdi o desejo de viver e olhei para trás, andei dois ou três passos e nada vi. É a minha imaginação -, digo para mim mesma. Abanei a cabeça e reinicio o meu percurso, largo uma gargalhada absurda que fez afastar um gato perdido na noite, para algures.
Queres que eu páre de contar? - pergunto, mas já não tenho qualquer reacção da tua parte.
Já não sei onde andava e também pouco me interessava saber. Nada vivo se encontrava na rua, passava apenas um carro do lixo, rapidamente, já cheio. Vi algumas montras, fechadas com grades, onde o meu reflexo espelhava mesmo com as luzes fracas da rua. O salão de jogos mesmo ali ao lado, fechado, como todos os domingos. Ouvi uns gemidos e aproximei-me...
Importas-te que abra esta janela? - perguntas - Está calor aqui..
Como queiras - respondo. Vejo-te perder alguns minutos junto da janela. Percorres o espaço com o olhar e fico à espera que voltes a sentar-te, o que fazes após acender mais um cigarro e dizes: Estavas a dizer..? - Olhas as minhas mãos, frenéticas de te possuir.
Estava a dizer que te ia matar - e rio-me. Expressas surpresa. - Estava a contar a minha noite, antes de chegar, e vou retomar onde interrompeste. - Pedes desculpa e acenas com a cabeça num tom de aprovação.
Ouvi os gemidos e olhei para todos os lados. Lá estava ela. Caída, desfeita, a sangrar. Senti os meus olhos a quererem fechar e pensei que ao acordar já estaria na minha cama, descansada. Ela estava magoada, com dores, só. Mais só que todos naquela noite fria, mais escondida que o gato no seu refúgio... Tirei os sacos do bolso, enfiei-os nos pés e nas mãos antes de chegar perto dela. A imagem ficava cada vez mais nítida. Sussurrou-me num tom de suicídio e pegou nas minhas mãos com o olhar. Tirei o canivete do bolso e tirei-lhe aquilo que lhe faltava para viver. Pousou a mão no corpo a agradecer o feito. É engraçado quando tudo o que é pedido é que lhe tirem a vida.. ou a falta dela.
Então, já acabaste a história? - perguntas. Senti-me ofendida com as tuas palavras e ignorei o teu olhar.
Tu nem me ouviste, pois não? Que sabes tu da minha história?
Ouvi sim! Quer dizer, mais ou menos.. desculpa, estava distraído. Estavas a contar que mataste alguém? Que alguém te pediu para o fazeres? Mas isso foi um sonho?
Não, não foi um sonho. Aconteceu há bocado, mesmo antes de chegar aqui. Matei-a, como me pediu. Não foi difícil. Sentia-a ficar cada vez mais fria e vazia, quando o canivete a perfurou.. como se a vida estivesse a sair-me do corpo, sabes?
Tu deves querer gozar comigo! Queres que acredite nisso?
Acreditas no que quiseres. Sempre soube que não levavas as minhas coisas a sério e que não irias acreditar nisto se te contasse.
Mas alguém acreditaria? Aliás, se fosse verdade, que aconteceu depois? Que fizeste ao corpo dela?
Nada.
Nada? - olhas-me com desconfiança. - Deixaste-a ali morta? Na rua?
Deixei. Ela já estava morta há muito tempo, só lhe fiz um favor. Depois afastei-me, levei o canivete comigo, retirei os sacos e continuei a andar até que decidi ligar-te para tomar café antes de voltar a casa. Destruí os sacos que levei. O canivete está ainda no meu bolso.. e pronto.
Sim, claro.. desculpa, mas não acredito.
Desculpa, desculpa! Sempre a pedir desculpa. Eu não preciso das tuas desculpas. Odeio as tuas desculpas e tudo em redor delas. - Levanto-me e vou até à janela, enquanto ficas quieto a acompanhar as minhas deslocações nervosas.
Mas isto agora está relacionado com a história ou com o quê afinal?
Tu não sabes mesmo, pois não? Acabei de te confessar que matei uma pessoa e tu estavas tão distraído nas tuas coisas que nem aqui e agora me dispensas a tua atenção? Sim, matei-a e voltaria a matar, porque já não havia nada nela que sobrevivesse de qualquer das formas. Matei-a e apenas tu sabes, porque sei que não acreditas e isso conforta-me da culpa. Acreditas na minha máscara de felicidade contínua, não achas isso estranho? Estar sempre tão bem?
Acho, mas..
Mas nada. Só queria que admitisses isso. - Baixas a cabeça e começo a sentir-me culpada. Pego nas minhas coisas e vou embora, antes que recuperes o teu narcisismo. Ficas furioso e chamas-me repetidamente, mas sigo o meu caminho de vez. Só depois repares no canivete que te deixei, ali mesmo, junto a ti. Volto a casa.
A noite passa, as horas passam. Tudo passa. No seguinte, fazes o caminho para minha casa e acordas-me. Levavas contigo o jornal com a notícia "Jovem mulher encontrada morta junto a um salão de jogos". Perguntas-me o que era aquilo. Mas já não sou eu. Encontras-me no vazio...
Que notícia é esta? A tua história era verdade?
Não sei do que falas! - afirmo espantada ainda com um ar ensonado e vejo o jornal - Estás parvo? Eu lá mataria alguém..
Mas tu própria o disseste ontem! E aquele canivete que me deixaste? Foi o canivete com o qual a mataste?
Encontraste o meu canivete? Caiu da mala... Não, não matei ninguém. Estás a alucinar!
Não, não estou! Então como explicas isto? - apontas para o jornal.
Não tenho que te explicar nada! Nem sabia disso. A única pessoa que morreu ontem à noite fui eu própria e era isso que te estava a contar, mas tu nunca me ouves e fazes juízos cedo demais..
Não acreditas em mim e levas-me à polícia. Interrogatório, testes, provas.. horas. Horas. Não havia qualquer indício de que pudesse ter morto aquela jovem.
Mesmo assim, ainda não acreditas em mim?
Desculpa...

Fevereiro 2005

1 comentário:

interzone disse...

"... o amor, é uma doença, quando nele julgamos ver a nossa cura..."

está mto fixe *